terça-feira, agosto 08, 2006

Era uma vez essa mulher...







Faltavam-lhe as cores do mundo. Não era inteira, nem assim, vista de perto... não era nem meia, nem meio a meio, nem quase qualquer coisa que lhe valhesse qualquer coisa. Era só ela, e não era nada, além daquilo tudo de que carecia...
Um belo dia, que na verdade não era tão belo assim, resolveu cansar-se. Resuluta, enfim, ela tornara-se, já que de fato cansou-se. Trancou as matérias que fazia, trancou-se dentro de casa, e já resoluta, resolveu mudar. Mais tarde não soube bem certo se resolveu de fato ou se só fez porque precisava, e precisando é que os instintos funcionam... mas quando debruçou-se sobre tal dúvida concluiu de pronto que de pouco adiantava sacia-la... jazia seco o tempo das respostas...
Mas, enfim...
Primeiro aguardou a Natureza...
Não lhe vinham as cores, nem os seios, nem as asas...
Não lhe vinha nada.
Cansou-se também. Espontânea, sequer resolvera... apenas cansara-se.
Rodou mais uma vez as chaves, para trancar bem todas as portas que se abriam depois das da casa. Trancou também as janelas e fechou muito bem as cortinas, para que nem o sol e nem o vento lá de fora pudessem ver o que ela era, o que ela se tornaria, e nem o elo entre as duas coisas, que ela pretendia deixar como perdido. Também para que até o ar lá de dentro se transformar-se junto com ela, se modificasse, se encantasse pela nova que paria, e para sempre a acompanhasse, como um cheiro só dela, como umas asas só sentidas...

E assim se fez, pela primeira vez, a sua vontade.

Fez seu próprio casulo.

Teceu suas teias.


Enquanto sua cumpria a sina, amargou amores mortos e contemplou vislumbrada um futuro em que os andarilhos do seu coração, antes perversos e pouco solicitos, estariam todos bobos, ressucitando os duelos por seu amor...
A vaidade lhe subiu a cabeça... queria tanto aquela meia lua de ex-amados, ajoelhados e humilhados, implorando o seu perdão, que nunca estava bom. Sucumbiu à febre insana dos que se perdem no próprio umbigo, depois de amargar a solidão do claustro.

Trocou de pele tantas vezes e com muito júbilo viu os maços de cabelho gasto e opaco descendo pelo ralo, dando lugar ao bom, ao belo, ao novo. E o novo era o que ela agora tinha. Ensaiou tantos olhares, tantos andares, tantos sins e tantos nãos... Era outra, era a que sempre quis ser. E agora que era, pensava ser também o que sempre quis ter... E não queria ninguém mais que ela mesmo, assim, imaculada e reluzente... parecia uma santa, parecia uma puta, uma gueixa, uma cigana... parecia a melhor de todas as coisas.

Satisfez-se muito tempo ali... na mesma casa trancada e já sem luz, com as beberagens e banquetes que inventara... sem sol, sem amor, sem necessidade.

Um belo dia (realmente nada belo), cansou-se. Era enfim o tempo de mostrar-se ao mundo. Tão culta, tão linda, tão fresca... e isso no tempo em que as contemporaneas já deviam afundar sob o tempo.

Pos qualquer trapo, era linda e completa, era tudo o que todos precisavam.

Então saiu.

O mundo estava morto.

Não havia homens, nem mulheres, nem amantes. Nem amores, nem rivais. Não havia nada, além dela.

Antes de derramar a primeira lágrima de desconsolo, sentiu um peso singelo nas costas... Adornava asas que lhe rasgavam as roupas.
Asas de borboleta...
Um resquício de sol lhe alcançou o rosto e ela se deu por satisfeita... esse era o beijo do amante maior!
E as asas voaram por ela, que parecia ter desde sempre voado. E ela ria um riso grande, largo, claro... Ela ria alto... Ela riu até perder o ar, fechar os olhos e não ver mais nada.

Ela voou pra sempre...

Ela não voltou nunca mais...


Um comentário:

NILO disse...

e na metamorfose ganhamos asas
no casulo a proteção
no isolamento a compreenção do ser